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O mercantilismo das práticas espirituais

O mercantilismo das práticas espirituais

 

A massificação e mercantilismo das práticas espirituais da “new age” através das redes sociais tem vindo a despersonalizar pequenos gestos que deveriam tornar-nos mais próximos do nosso “eu autêntico”.

 

O resultado da proliferação de terapeutas holísticos sem formação e goal oriented para resultados ultra rápidos, com pinta de influencers digitais e conhecimentos em lugares chave da comunicação social é uma mão cheia de pessoas/crentes/seguidores que gastam dinheiro em workshops e cursos sem sentido, sem utilidade prática e se tornam viciados na coisa,

 

 

 

Espiritualidade Express

 

A Espiritualidade Express apregoa as mudanças de pensamento e de comportamento como se de repente pudéssemos transformar 30/40/50 anos de experiências de vida, com tudo de bom e mau, numa vivência bolinha de sabão: leve, brilhante e perfumada.

 

Cada um de nós carrega um fardo, uma bagagem de vivências que abrangem vários espectros emocionais. Ao longo da vida aprendemos a reagir às situações de acordo com as condições que tínhamos.

 

Há uma certa altura na vida em que, eventualmente, a gente abre a pestana para uma “nova vida”, deixamos a vitimização de lado, agarramos a rédeas da nossa vida, promovemos a mudança. Geralmente a partir dos 30/40 anos, a nossa visão desperta para uma vida mais espiritual, recheada de outros valores a que antigamente não prestávamos tanta atenção.

 

Há, no entanto, um pormenor que em toda esta experiência pode ser falacioso:

 

A ilusão de que nós criamos a nossa realidade

 

Não é que isto não suceda num determinado nível, por exemplo: má alimentação, fumar e beber excessivamente, provocam problemas de saúde. Ou se entrares num sítio com maus modos e mal disposto, provavelmente as outras pessoas vão reagir de igual humor, perpetuando uma ambiente de treta, não é?

 

Um problema que surge associado à inclusão dessa ideologia de “eu posso tudo” em algumas terapias pseudociêntíficas, cursos de desenvolvimento pessoal ou até em movimentos religiosos neopentecostais, é que as pessoas começam a sentir-se culpadas quando as coisas não acontecem da maneira que “manifestaram para o universo” ou “pediram a deus”

 

“Quando estamos a sofrer, a última coisa que precisamos é que alguém pergunte como criamos isso, o que pode nos envergonhar por termos feito escolhas tão ruins. O que precisamos é de apoio emocional na forma de espelhamento positivo de nossos sentimentos, que podemos ter perdido quando crianças. Precisamos de compaixão, não de uma recitação do sistema de crenças de alguém.”

John Amoedo

 

O que eu e outros colegas psicólogos e terapeutas apanhamos muitas vezes em consulta é isto: pessoas encalhadas na ideia que falharam, que não fizeram aquilo que deviam ter feito ou que não tiveram fé suficiente para provocar uma mudança e por isso não saem da mesma mesmice.

 

E lá temos nós de:

1) ajudar a pessoa a recompor-se do bullying e da lavagem cerebral que lhes é feita;

2) desfazer essa crença irreal de que tudo podemos e tudo controlamos e que tudo acontece tão rapidamente quanto o tempo que leva uma onda a ir e vir.

 

Primeiro, controlamos algumas coisas, não tudo. 

 

Nós somos 1 em 8 bilhões de pessoas. Quantas decisões são tomadas por segundo que por sua vez influenciam as interacções, que na sequência disso interferem no funcionamento do planeta e de cada ser humano com os seus 6 degraus de separação?

Depois, em algumas situações, a iniciativa de retomar o controlo da vida (perdido por variadíssimas razões) é legítimo e deve acontecer, mas é natural que demore tempo, precisamente porque, como disse no início, não se desaprendem 30, 40, 50 anos de hábitos num estalar de dedos.

 

 

 

Viciados em cura

 

O problema com a Espiritualidade Express é que fomenta a busca incessante pela cura, pelos resultados, levando muitas pessoas a fazerem terapia atrás de terapia sem dar tempo de integração.

O mesmo autor, que referi acima, escreveu: “Coisas acontecem. Nós existimos em um universo frágil e interconectado. A vida não está firmemente sob nosso controle. No coração de todas as grandes tradições espirituais está o humilde reconhecimento de que existem forças no universo que são mais poderosas do que nós.”

Somos muitas coisas boas, capazes, inteligentes e corajosos, falta-nos, porém, humildade.

Humildade de reconhecer que há forças maiores que nós, basta atentar na natureza e na sua força bruta e tantas vezes destrutiva e implacável. Falta-nos humildade para perceber que na realidade somos insignificantes perante alguns acontecimentos, seja a vida, seja a morte e que o inevitável também acontece.

Pensar assim não nos torna mais fracos ou vulneráveis, pelo contrário. Ajuda-nos a manter uma consciência saudável de que na vida também acontecem imprevistos e que em vez de lutarmos contra, deveríamos aprender a lidar com eles. Ter jogo de cintura aprende-se e desenvolve-se, esse é o verdadeiro “fluir” com a vida.

 

Este é um tema complexo , que dá pano para mangas e suscita muitas discussões. Eu tenho a minha própria experiência pessoal para dar o exemplo e, enquanto terapeuta, observo o que se passa à minha volta, além de ler muito sobre o assunto e de perspectivas variadas. É com base nisso que escrevo e dou a minha opinião.

 

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