Culpabilização nos movimentos religiosos e terapêuticos
4 de Abril, 2022
O problema da culpabilização nos movimentos religiosos e terapêuticos alternativos – Parte 1/3
Para falar do tema da culpabilização presente em alguns movimentos religiosos e terapêuticos alternativos, partimos da premissa que
“No coração de todas as grandes tradições espirituais está o humilde reconhecimento de que existem forças no universo que são mais poderosas do que nós”.
A citação é do autor John Amodeo, num artigo para a Psychology Today, no qual ele diz também:
“Um ponto de vista popular em algumas comunidades espirituais e da Nova Era é que somos responsáveis por tudo o que nos acontece. Quando algo dá errado, somos instruídos a nos perguntar: “Como eu criei isso?”
Um dos membro da comunidade, Betrayal Trauma Recovery, fundada por Anne Blythe para apoiar mulheres vitimas de abuso e trauma, refere que a expressão:
““nós criamos nossa própria realidade”, é uma forma de culpar a vítima. Existe o ensinamento de que tudo o que sentimos e experienciamos tem origem nos nossos próprios pensamentos (…) e que nada acontece connosco do lado de fora. Isso pode ser muito culpabilizador para uma vítima [de abuso].”
Este discurso pode ser verdadeiramente desestabilizador para alguém que esteja a passar por um problema, qualquer que seja a sua natureza, pois há situações que estão muito além daquilo que nós, individualmente, conseguimos fazer.
Ultrapassar a dor, o trauma, a perda ou reconhecer um comportamento ou hábito nocivo pode levar anos, dependendo muito das condições pessoais, financeiras, familiares e sociais que temos.
Ao invés de apontar dedos, deveremos ser mais compassivos e activos, pois este é um problema que nos toca a todos.
Amor próprio e auto cuidado
Actualmente damos muito valor à questão do amor próprio e do auto cuidado, uma tendência que veio para nos libertar de vários tipos de opressão a que – principalmente as mulheres, mas não só – temos sido submetidas.
Mas a quase obrigatoriedade de manter hábitos saudáveis pode trazer-nos alguns dissabores, nomeadamente: foco excessivo em coisas que não podemos controlar, frustração e culpabilização.
Alienação da realidade no meio espiritual
Já para não falar da alienação da realidade na qual alguns conselhos terapêuticos de bem-estar espiritual estão mergulhados, como se todas as pessoas vivessem o mesmo estilo de vida, com as mesmas condições sociais e financeiras.
Ao ouvir falar alguns influencers e gurus do bem estar relativamente a determinados aspectos do autocuidado, parece que se esquecem que algumas pessoas não têm outra opção senão ter o seu dia preenchido com o trabalho e os afazeres domésticos.
Exemplos bem próximos de nós: O que dizer da mulher, mãe solteira, que tem dois empregos para poder sustentar os filhos, chega a casa e tem as tarefas diárias para cumprir, e quando termina só quer fechar os olhos e descansar?
O maior autocuidado para esta mãe será ver os seus filhos a dormir, saudáveis, depois de um bom jantar, e poder ela também deitar-se a recuperar energia.
Responsabilização é diferente de Responsabilidade
No primeiro temos o conceito que “eu sou responsável por algo acontecer”. No segundo, “eu responsabilizo-me pelo que sei o que tenho de fazer, e faço-o”.
Certos movimentos new age, especialmente os que se dirigem às mulheres, fomentam igualmente a ideia de “feminino ferido”, “útero doente” ou conceitos semelhantes – como se elas fossem responsáveis pela criação e manutenção do problema.
Isto dá-se, nomeadamente, quando referem que problemas do sistema reprodutor ocorrem porque a mulher não aceita a sua feminilidade, carrega traumas do passado ou tem uma má relação com o pai, entre outros.
Aquilo que muitas vezes acontece é que os terapeutas holísticos, sem formação em saúde, psicologia ou apoio social e comunitário, disparam sobre as pessoas que os procuram, baseando-se em diversas teorias religiosas, filosóficas e até (pseudo) cientificas, como se fossem verdades absolutas (e não um sistema crenças) e instruem-nas na ideia de que elas estão “feridas, traumatizadas e quebradas”.
“Você não vê terapeutas falando sobre energia peniana para os homens, mas estamos sempre encontrando terapeutas alternativos dizendo que a mulher precisa limpar o corpo por causa de relacionamentos passados”
Bruno Farias, psicólogo
A solução oferecida passa muitas vezes por fazer determinado ritual mágico, curso espiritual de vários meses ou retiro detox – muitos deles caríssimos e sem qualquer efeito terapêutico ou apoio psicológico auxiliar.
Culpabilização das mulheres
Além da apropriação cultural de rituais que estão fora do nosso contexto, existe também a ideia de que um círculo feminino de apoio pode curar problemas ginecológicos ou traumas familiares ancestrais.
Em consequência destas ideias, as mulheres têm tendência a sentir-se responsáveis pelos seus problemas – mesmo quando não têm controlo sobre eles, especialmente nas questões de saúde. É como se estivéssemos a culpar a pessoa por aquilo que acontece, em vez de apresentarmos real ajuda.
O mesmo acontece com os meios religiosos, nos quais é difícil para as mulheres, em casos de violência doméstica, por exemplo, ter o apoio necessário para resolver o problema.
Muitas vezes elas são responsabilizadas pelos líderes das igrejas, como se a felicidade e estabilidade do lar dependesse unicamente delas e assim retirando ao cônjuge qualquer responsabilidade na relação, a não ser providenciar o sustento financeiro.
(Continua….)
Autoria, pesquisa e redacção:
Joana Silva. terapeuta e autora do site www.terapiasdalma.com e Patrícia Gomes, terapeuta e autora do site www.nemsemprezen.pt
(dezembro 2021 – março 2022)
Bibliografia:
Ávila, A. Aragão. (2019). “Armadilhas da culpabilização materna”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 2, e65236.
New Age Bypass Is Victim-Blaming | Betrayal Trauma Recovery – consultado em 31/01/2022
No, We Don’t Create Our Own Reality | Psychology Today – consultado em 12/12/2021
Ex no útero? O que é a reconsagração do ventre – consultado em 01/02/2022
Vivo para escrever. Adoro puzzles e mistérios. Não passo sem um cafézinho, música (especialmente heavy metal!) e uma boa dose de ironia. Silêncios são necessários e prazerosos, assim como os livros * Sou Licenciada e Mestre em Psicologia e Terapeuta de Shadow Work * Actualmente continuo a estudar Psicologia Analítica mas também Psicologia da Religião, Filosofia do Yoga e Gnose e Esoterismo Ocidental.
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